quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Carta de Reynaldo Bochner em despedida ao amigo Haroldo Barroso

O braço do toca discos ia para a direita e para a esquerda, num movimento ritmado e monótono. Eram 3:00hs da madrugada de 31 de agosto de 1965.
Barroso levantou-se e com a mão precisa recolocou o braço no início do disco, repetíamos, assim, mais uma vez o concerto para violino, oboé, cordas e contínuo em ré menor de Bach – uma de suas músicas preferidas.  Pelo chão, livros espalhados de seus autores prediletos, que ele me mostrara e comentara: Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Proust, Jean Genet, Mario Faustino e um livro sobre jardins de Burle Max que ele colaborara. Assim, nasceu entre nós uma amizade que vai além do comum e que se preservou até sua morte aos 54 anos.
Embora intelectual, Barroso era um homem, por fora, muito simples. Olhando – se para ele, de estatura baixa -  não poderíamos jamais supor a grandeza de sua cultura e o monumental artista que existia dentro dele. Quando trabalhava virava um gigante.
Tímido, tinha dois grandes prazeres na vida: um era a família, o outro era receber os amigos.
Um ano após nos conhecermos fomos juntos para a Europa. Para ambos era a primeira viagem ao continente. Passamos uns 4 meses perambulando pelos museus de diversas cidades e o que mais me impressionara é que Barroso, um mestre em cultura artística, era um profundo conhecedor de todos os museus pelos quais passávamos, sabendo as obras de artes mais importantes de cada um deles, como se já tivesse inúmeras vezes naqueles lugares. Muitas vezes, viajávamos para uma cidade em particular somente para apreciarmos uma determinada catedral ou obra de arquitetura antiga.
Barroso era uma pessoa de habilidade incomum. Tinha grande dose de paciência e forte poder de concentração quando trabalhava com as mãos.
Nunca foi uma pessoa vaidosa, gostava de andar descalço sempre que podia e usar roupas simples quando relaxava nos finais de semana em Saquarema, lugar onde frequentou durante muitos anos.
Do Ceará, onde nascera, trazia um sotaque regional que nunca perdera e certos hábitos como tirar a sesta na rede, sempre que podia.
Desenhava como ninguém e dominava praticamente todas as técnicas, desde aquarela até bico de pena.
Barroso, Barrozinho para os amigos, Haroldo, Haroldinho para a família era o caçula de 7 irmãos.  Quando recebia os amigos, comandava a cozinha desde a entrada até a sobremesa. Cozinhar era o seu “hobby” predileto.  Gostava de ler livros sobre culinária e experimentar pratos novos. Quando tudo estava pronto, gostava de se soltar um pouco na bebida e algumas vezes recitava de cor poesias inteiras
É difícil explicar como aquele homem, relativamente de hábitos tão simples, pôde realizar uma obra tão monumental, tão própria e importante. A única explicação é que os gênios não têm caras.
Pena ele não estar mais aqui entre nós, passando a mão sobre sua cabeça, como era seu cacoete, sempre que se deparava com uma situação inibidora, como ser alvo de todas as atenções, para participar desta grande festa, porque, tenho certeza, todos os amigos aqui presentes o amaram muito.

Reynald Bochner

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